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Das metamorfoses, de Mário Quintana

A Lua, quando fica velha, todo o mundo sabe que vira lua nova.

Mas negro velho vira macaco. Desses macaquinhos de realejo... Cuidado: quanto mais velhos mais vivos. Sabem tudo. Descobrem tudo. Se tens algum pecado oculto, foge das suas caretas falsamente amigas, dos seus olhinhos espertos e cínicos!

E os velhos jurisconsultos viram fetos... esses fetos que a gente olha, meio desconfiado, nos bocais de vidro.., e que, no silêncio dos laboratórios, oscilando gravemente as cabeças fenomenais, elucubram anteprojetos, orações de paraninfo, reformas da Constituição... Sempre que puderes, crava um punhal, um garfo, um prego, no miolo mole dos fetos.

Em compensação, as velhinhas que fazem renda viram fio... Fio, sim senhor! Esses fios que vagam soltos no ar... que ninguém sabe de onde vêm.., e se prendem num galho morto... no chapéu do viajante solitário.., no freio do seu cavalo.., que se prendem, desesperadamente, num lábio fresco, numa trança ao vento...

E os velhos que mal podem acender os cigarros, os pobres velhinhos trêmulos viram reflexos... Esses reflexos que dançam no ar... que nascem no ar... De uma vidraça.., de um pára-brisa... do galo do pára-raio que volteou de súbito... de folhas que se assustam, de mariposas tontejando. de uma ronda infantil sob a lua redonda...

QUINTANA, Mário. Sapato florido. 1.ed. Porto Alegre: Editora Globo.
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Muito barulho por nada, de William Shakespeare


Título: Muito barulho por nada (Much ado about nothing)
Autor: William Shakespeare
Páginas: 152
Editora: Coleção L&PM Pocket
Tradutor: Beatriz Viéga-Faria


A trama rodeia um homem e uma mulher, ambos espirituosos, astutos e igualmente bem articulados que têm em comum a habilidade de arquitetar respostas rápidas para qualquer pergunta ou afirmação. É com base nas falas de Beatriz e Benedito que se constrói a vereda cômica da obra, sendo a desordem armada pelos dois ao se encontrarem o principal foco do prazer da plateia. Benedito é um rapaz formoso e querido pelas mulheres, mas Beatriz recusa-se a derreter-se por ele como as outras moças. Logo nasce uma fagulha de ódio entre os dois, ambos tendo a ideia do casamento como algo repugnante. O lado trágico da peça brota da intriga armada por um homem vingativo e carregado de ódio. Com provas quase convincentes, a donzela Hero, prima de Beatriz, é acusada de traição.
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Feijoada completa, de Chico Buarque


Mulher, você vai gostar:
Tô levando uns amigos pra conversar.
Eles vão com uma fome
Que nem me contem;
Eles vão com uma sede de anteontem.
Salta a cerveja estupidamente
Gelada pr'um batalhão
E vamos botar água no feijão.
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Ódio de cunhada, de Nelson Rodrigues

Vivia dizendo:
— O sujeito que trata bem mulher está desgraçado! Está frito! E dava conselhos aos tímidos:
— Dá-lhe duro! Deixa de ser besta! — e suspirava: — Ah, se fosse comigo! Os outros escutavam, no fundo maravilhados com essa ostentação de selvageria. Uns comentavam, nas suas costas:
— É potoca! Garganta pura!
Mas não era. Bonito, com uma pele fina e rósea, os olhos verdes e intensos, um bigode pequeno e aparadíssimo, um busto de estátua — ele fazia um sucesso, e tremendo, com as mulheres. O telefone, em casa, não parava; recebia bilhetinhos; dizia-se que até senhoras casadas o perseguiam, da maneira mais deslavada e frenética. Ao contar que tratava mal, a pontapés, as suas conquistas, não exagerava. As mulheres passavam o diabo com Orlando. Até apanhavam. Ainda ele, com a sua brutalidade de modos e de palavras, dizia:
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O chantagista, de Nelson Rodrigues

A futura sogra, que era professora e tinha um gênio adorável, dizia sempre:
— O essencial no casamento é a compreensão. E insistia, acima de tudo, num ponto que lhe parecia essencial:
— Nada de discussões! Nada de bate-bocas!
Fernando ouvia tudinho e, mais tarde, com os amigos, dava demonstrações do maior entusiasmo: “Tenho uma sogra que é a minha segunda mãe!” Os amigos ficavam impressionados. Uns, meio céticos, perguntavam: “No duro?” Fernando confirmava, com uma ênfase irresistível:
— Palavra de honra! E quero ser mico de circo se for mentira!
De fato, d. Zuleica exercia, naquele namoro, uma influência das mais estimáveis. Como sua ascendência era grande sobre a filha e sobre o genro (futuro genro), eles não faziam nada sem consultá-la antes. A sós com a filha dizia-lhe: “Certas intimidades, não! E nada de beijo de língua!” Mesmo na sua ausência, Dolores ponderava:
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Ex Fumantes LTDA., de Stephen King

Morrison esperava por alguém que estava retido no engarrafamento de trafégo aéreo sobre o aeroporto internacional Kennedy quando avistou um rosto conhecido na outra extremidade do bar e foi até lá.

― Jimmy? Jimmy McCann?

Era ele. Um pouco mais pesado do que quando Morrison o vira na Exposição de Atlanta, no ano anterior, mas, fora disso, parecendo em espantosa forma física. Na universidade, McCann fora um magro e pálido fumante inveterado, desses que acendem um cigarro na guimba do outro, com o rosto sumido atrás de um enorme par de óculos de aro de tartaruga. Aparentemente, mudara para lentes de contato.

― Dick Morrison?

― Exato. Você está ótimo.

Trocaram um aperto de mãos.

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Da associação das ideias, de David Hume

É evidente que há um princípio de conexão entre os diferentes pensamentos ou ideias do espírito humano e que, ao se apresentarem à memória, se organizam com certa regularidade. Isto é tão visível em nossos pensamentos ou conversas mais sérias que qualquer pensamento irregular que nos interrompe é imediatamente notado e rejeitado. Até mesmo em nossos mais desordenados sonhos e devaneios notamos que a imaginação não vagou a esmo, porque havia sempre uma conexão entre as ideias. Se observarmos uma conversa solta e livre, notaríamos imediatamente alguma coia que a ligou em tosas as suas transições. E se esse princípio faltasse, quem quebrou o fio da conversa poderia ainda informar que havia esclarecido um seu espírito uma sucessão de pensamentos, os quais tinham se desviado gradualmente do assunto da conversa.
Até mesmo nos idiomas mais diferentes, naqueles que não conseguimos imaginar absoluta conexão entre seus termos, encontramos que as palavras que exprimem ideias mais complexas quase se correspondem entre si, o que é uma prova segura e simples de que há um princípio universal que tinha influência sobre todos os homens.