O som do nosso tempo, de Fernando Sabino

Que haveria dentro daquela misteriosa caixa preta que o Seixas havia trazido? O Seixas era um rapazinho bem-falante e sabido que, no meu tempo de menino, frequentava nossa casa, não sei com que intenções; imagino hoje que fossem as de namorar minhas irmãs, ou suas amiguinhas, que também nos frequentavam.
Pois o Seixas, todo folgazão, se dispunha naquele momento a fazer com a tal caixa uma demonstração para as meninas. Coloquei-me estrategicamente no meio delas e aguardei os acontecimentos. Com um sorriso gentil e gestos delicados de mágico, o Seixas destampou a caixa, revelando em seu interior um prato giratório e um braço metálico que tinha na ponta unia rodela niquelada e toda furadinha. 
O gramofone, eu não cheguei a conhecer: uma caixa musical, tendo no anúncio um cachorro branco de cabecinha tombada e orelha atenta, junto a uma enorme cornucópia por onde saía o som. Hoje pode ser visto por aí, como peça de decoração colhida no fundo dos antiquários.
Não era, pois, um gramofone, mas seu descendente direto, aquilo que eu tinha diante dos olhos: uma vitrola. Para que o prato girasse, era preciso dar corda — coisa que o Seixas, muito lampeiro, se pôs a fazer: introduziu no costado da caixa uma manivela e começou a girá-la, a cabecinha torta de expectativa como o cachorro do anúncio. Feito o que, colocou um disco no prato, e parecia um dentista ao prender, cheio de dedos, uma agulhinha prateada no lugar apropriado, antes de fazer a geringonça funcionar. O disco era, se me lembro, Os Bar-queiros do Volga. O som saía meio chiado, e de vez em quando engrossava, desafinando, ia se arrefecendo, os barqueiros ameaçados de se afogar para sempre no Volga. 
— É assim mesmo, é assim mesmo — dizia o Seixas, já meio suado, e voltava a girar freneticamente a manivela, dando à música novo alento. 
Ao fim, a novidade não fez o esperado sucesso entre as mocinhas. Talvez não apreciassem tanto "Os Barqueiros do Volga", ou a corte que lhes fazia o Seixas. 
Este, não sei que fim terá levado, com a sua maravilhosa máquina musical. Provavelmente enfiou a vitrola no saco e saiu por este mundo em busca de melhores ouvintes. Em pouco ela estaria obsoleta, substituída por aparelhos mais aperfeiçoados. Gramofone, vitrola, eletrola, para não se falar no fonógrafo, foram se tornando ao longo do tempo designações arcaicas, hoje refugiadas nos dicionários. A bem dizer, os conjuntos de som de nossos dias já não têm designação alguma, acabaram referidos pelos jovens como som: 
— Tenho lá em casa um som que é um barato. 
— Então vamos lá tirar um som. 
O que denota que a expressão vai se empobrecendo em favor da música — ou a música, a todo volume, vai acabando com a expressão entre os que não têm o que exprimir.
Ouvir música passou a ser uma distração ao alcance de qualquer criança. Existem mesmo, especialmente para elas, toca-fitas portáteis movidos a pilha, que fariam o Seixas se ralar de inveja. 
Mas criança não tem mesmo jeito. Outro dia o merino chegou em casa esbaforido: 
— Descobri um som que é um estouro! Vem ver. papai! Vem comigo! 
Tomou o pai pela mão e o arrastou até a casa de objetos usados da esquina: 
— Não precisa de ligar na tomada, não precisa de.pilha nem de nada! Compra pra mim! 
No meio da bagulhada que enchia a loja, o pai deu com uma vitrola daquelas antigas, de dar corda. Exatamente igual à do Seixas.


SABINO, Fernando. A falta que ela me faz. 9.ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1923.

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Unknown | 21 de abril de 2021 às 18:35

Exercício

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