O hóspede do 504, de Fernando Sabino
São Paulo era uma cidade da qual se dizia que, feito o que se tem de fazer, deve-se sair no mesmo dia ou, no mais tardar, no dia seguinte.Sabendo disto, ele, recebido à tarde no aeroporto pela pessoa com quem deveria se entender, seguiu direto ao escritório do outro para tratar de negócios. Jantaram juntos e depois ele, já sozinho, deu ainda um giro pela noite, tomou umas e outras - era tarde quando pegou um táxi, mandou tocar para o Hotel Excelsior.
― Quarto 504 - pediu na portaria.
Cansado, despiu-se e se atirou na cama, disposto a seguir direto para o aeroporto assim que acordasse, não se dando ao trabalho nem de abrir a mala. Quase a dormir, considerou, entretanto, que deveria pelo menos escovar os dentes. Acendeu a luz, e, tonto de sono, olhou ao redor por sua mala, não encontrou.
Intrigado, dirigiu-se ao banheiro. Num sobressalto, viu-se completamente desperto: sobre a pia, uma fila de potes de cosméticos, frascos de perfume, pentes, escovas, grampos e demais objetos de toalete feminina.
De volta ao quarto, abriu o armário e, atônito, deu com uma fileira de vestidos e ternos dependurados, sapatos de mulher e de homem. Não precisava de mais nada para entender: era um casal ― só faltava ser apanhado completamente nu em quarto alheiro, podia haver até tiro. Duras horas da manhã ― chegariam de um momento pra outro.
No atropelo de se vestir, por pouco não põe a calça e se esquece da cueca. Respirou aliviado quando se viu na portaria:
― Olha aí, você me deu a chave errada.
― Perdão, o senhor pediu 504.
― Então o erro foi meu. Veja em que quarto estou.
Não estava em nenhum: seu nome não constava da lista de hóspedes.
― Não é possível. E que diabo fizeram da minha mala?
Não foi fácil esclarecer o equívoco: não prestara atenção ao chegar a São Paulo, e fora levado a um hotel que não era o Excelsior, onde costumava se hospedar. Sim, mas qual? Atravessou a rua, dirigiu-se ao hotel em frente:
― Por favor, vê se eu estou hospedado aí - pediu, dando seu nome: ― Quarto 504. Ou outo qualquer.
Nem no 504, nem noutro qualquer. Alta madrugada, a pé e depois de táxi, começou uma romaria de hotéis a partir das vizinhanças, como personagem de Pirandello:
― Por acaso eu estou hospedado aí?
― Então não sou eu o hóspede do 504?
― O senhor sugere algum outro hotel em que eu possa estar?
Como um maluvo, lá seguiu ele, à procura de si mesmo. O dia começava a clarear e o próprio motorista do táxi, sem entender nada, já sugeria, meio suspicaz:
― Só falta o senhor procurar no necrotério.
Para sair daquele pesadelo, acabou lhe ocorrendo usar o telefone de um dos hotéis onde não estava hospedado, tirando da cama o homem que viera ver em São Paulo:
― O senhor pode me informar em que hotel estou?
No que dependesse do outro, a partir de então, o negócio que tinha vindo tratar com ele jamais seria concretizado:
― Não vá me dizer que você ficou bebendo até esta hora.
Era um hotel no centro, ainda novo, cuja existência ignorava.
Foi o tempo de ir até lá, apanhar sua mala (no 504) e seguir no mesmo táxi para o aeroporto.
SABINO, Fernando. A falta que ela me faz. 9.ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1923.
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