Caminhões, de Stephen King

O nome do sujeito era Snodgrass e percebi que se aprontava para fazer alguma maluquice. Arregalara os olhos, mostrando o branco, como um cão prestes a brigar. Os dois garotos que entraram derrapando no estacionamento com um velho Fury tentavam falar com ele, que mantinha a cabeça inclinada para um lado como se estivesse ouvindo outras vozes. Tinha uma barriguinha de chope que aparecia sob o terno de boa qualidade que já estava começando a ficar brilhante nos fundilhos das calças. Era um vendedor e mantinha a maleta de amostras perto de si, como um cão de estimação adormecido.
― Tente o rádio outra vez ― disse o motorista de caminhão sentado ao balcão.
O cozinheiro de minutas sacudiu os ombros e ligou o rádio. Tentou sintonizá-lo em toda a faixa de ondas, mas só conseguiu captar estática.
― Passou muito depressa ― protestou o motorista de caminhão. Pode ter saltado alguma estação.
― Diabo ― resmungou o cozinheiro.
Era um negro idoso com um sorriso de dentes de ouro e não encarava o motorista.
Olhava para o estacionamento através do janelão que ia de ponta a ponta da lanchonete.

Lá fora estavam sete ou oito caminhões pesados, os motores ligados em baixa rotação, num rugido preguiçoso como de enormes gatos ronronando. Dois Macks, um Hemingway e quatro ou cinco Reos. Carretas de transporte interestadual, com inúmeras placas de licença e antenas flexíveis de radio-transmissores curvadas para trás das cabines.
O Fury dos garotos estava de rodas para cima no final de compridas e curvas marcas de derrapagem no cascalho do estacionamento. Fora reduzido a um monte de sucata. Na estrada do desvio para a parada de caminhões estava um Cadillac todo amassado, o proprietário olhando pelo pára-brisas estilhaçado como um peixe estripado. Óculos com aros de tartaruga pendiam-lhe de uma das orelhas.
A meio caminho entre o Cadillac e o estacionamento jazia o corpo de uma jovem, que saltara do carro ao ver que este ia bater. Conseguiu saltar em pé, mas não teve a mínima chance de escapar. Era a pior de todos, embora estivesse caída de bruços. Uma nuvem de moscas zumbia sobre ela.
No outro lado da estrada, uma velha camioneta Ford fora jogada através do guardrail. O acidente ocorrera havia uma hora. Ninguém passara por ali desde então. Da janela era impossível ver a auto-estrada e o telefone não funcionava.
― Girou depressa demais ― protestou novamente o motorista de caminhão. ― Você devia...
Foi então que Snodgrass explodiu. Derrubou a mesa ao levantar-se, quebrando xícaras e provocando uma chuva de açúcar. Seus olhos estavam mais desvairados que nunca, o queixo caído. Repetia sem parar:
― Temos que cair fora daqui temos-que-cair-fora-daqui temosquecairforadaqui...
O rapaz gritou e sua namorada berrou.
Eu ocupava o tamborete mais próximo à porta e o agarrei pela camisa, mas ele se soltou com um arranco. Estava totalmente alucinado. Seria capaz de atravessar a porta de uma caixa-forte de banco.
Bateu a porta e começou a correr pelo cascalho, em direção à vala de drenagem no lado esquerdo. Dois dos caminhões partiram no seu encalço, os canos de descarga verticais lançando a escura fumaça de óleo diesel para o céu, as enormes rodas traseiras levantando uma saraivada de cascalho.
Snodgrass não poderia estar a mais que cinco ou seis passos da orla do estacionamento plano quando se voltou a fim de olhar para trás, o pavor estampado no rosto. Seus pés se embaraçavam e ele tropeçou, quase caindo. Recuperou o equilíbrio, mas já era tarde demais.
Um dos caminhões abriu passagem e o outro atacou, a enorme grade do radiador brilhando selvagemente ao sol. Snodgrass gritou, um som alto e agudo, quase abafado pelo forte ronco do pesado Reo.
O caminhão não o derrubou ou arrastou. Na verdade, isto seria melhor. Ao contrário, lançou-o para cima e para o lado, como uma bola de futebol chutada por um jogador.
Por um instante, Snodgrass ficou silhuetado contra o céu quente da tarde, como um espantalho mutilado. Depois, sumiu na vala de drenagem.
Os freios do enorme caminhão assoviaram como o sopro de um dragão, as rodas dianteiras se travaram, cavando sulcos no cascalho do estacionamento, e o monstro parou antes que a carreta se desgovernasse. Filho de uma puta.
A garota no reservado gritou. Virei a cabeça e constatei que o motorista de caminhão apertara o copo com tanta força a ponto de quebrá-lo. Não creio que ele já tivesse percebido. Leite e gotas de sangue pingavam no balcão.
O cozinheiro negro parecia petrificado junto ao rádio, um pano de pratos na mão, total perplexidade no rosto. Seus dentes de ouro brilhavam. Por um instante não houve qualquer ruído exceto o zumbido do relógio elétrico de parede e o ronco do motor do Reo que voltava para junto dos colegas. Então, a garota começou a chorar e tudo ficou bem ― ou, ao menos, melhor.
Meu carro estava ao lado da lanchonete, também reduzido a sucata. Era um Camaro 1971 e eu ainda estava pagando as prestações. Mas creio que isso já não fazia diferença.
Não havia ninguém nos caminhões.
O sol brilhava e se refletia nas cabinas vazias. Os volantes giravam sozinhos. Não se podia pensar muito a respeito. Quem pensasse muito naquilo, enlouqueceria. Como Snodgrass.
Duas horas se passaram. O sol começou a descer no horizonte. Lá fora, os caminhões patrulhavam em círculos lentos, ou descrevendo oitos. As luzes de estacionamen-to e as lanternas se haviam acendido.
Percorri duas vezes o comprimento do balcão, a fim de desenferrujar as pernas, e depois fui sentar-me num reservado junto à grande janela da frente. Era uma parada de caminhões típica, próxima à rodovia principal, instalações completas de serviços nos fundos, com bombas de gasolina e óleo diesel. Os motoristas de caminhão vinham ali para comerem tortas e tomarem café.
― Moço?
A voz era hesitante.
Virei-me. Eram os dois garotos do Fury. O rapaz aparentava dezenove anos. Tinha cabelos compridos e uma barba rala, que só agora começava a engrossar. Sua namorada parecia ainda mais moça.
― Sim?
― O que lhe aconteceu?
Sacudi os ombros.
― Eu vinha para Pelson pela rodovia interestadual ― respondi. ― Um caminhão vinha atrás de mim ― pude vê-lo de longe pelo retrovisor ― com o pé na tábua. Era possível escutá-lo a um quilômetro e meio de distância na rodovia. Ultrapassou um Volkswagen e o jogou para fora da estrada com uma rabada da carreta, da mesma maneira que a gente joga uma bola de papel para fora da mesa com um peteleco. Pensei que o caminhão também fosse sair da estrada. Nenhum motorista conseguiria controlar uma carreta rabeando daquela maneira. Mas não saiu. O Volkswagen capotou seis ou sete vezes e explodiu. E o caminhão apanhou o próximo carro da mesma forma. Aproximava-se de mim e tratei de pegar depressa a rampa de saída.
Ri sem entusiasmo, concluindo:
― Vim dar bem numa parada de caminhão, dentre todos os lugares possíveis. Pulei da frigideira e caí no fogo.
A garota engoliu em seco.
― Vimos um ônibus Greyhound na pista da contramão. Passava... por cima dos carros.
Explodiu e incendiou-se, mas, antes disso, foi... uma carnificina.
Um ônibus Greyhound. Era novidade ― e ruim.
Lá fora, todos os faróis se acenderam de repente ao mesmo tempo, banhando o estacionamento numa luz fantasmagórica, sem profundidade. Grunhindo, os caminhões continuavam a patrulhar de um lado para outro. Os faróis pareciam dar-lhes olhos e, na crescente penumbra do crepúsculo, as escuras carrocerias das enormes carretas pareciam os ombros quadrados e encolhidos de gigantes pré-históricos.
O cozinheiro indagou:
― É seguro acender as luzes?
― Acenda e logo saberemos ― repliqueis.
Ele acionou os interruptores e uma série de globos sujos de moscas se acendeu ao longo do teto. Ao mesmo tempo, um letreiro fluorescente situado lá fora piscou e começou a anunciarem luzes coloridas: "Parada de Canvnhões & Lanchonete Conant's ― Boa Comida." Nada aconteceu. Os caminhões prosseguiram o patrulhamento.
― Não consigo entender ― disse o motorista de caminhão, que descera do tamborete junto ao balcão e andava de um lado para outro, a mão enrolada num grande lenço vermelho.
― Nunca tive problemas com meu carro. Sempre se portou bem. Parei aqui um pouco depois de uma hora, para comer um prato de espaguete e acontece isso ― gesticulou com o braço e a ponta do lenço drapejou como uma bandeira. ― Meu caminhão agora está lá fora, aquele com a luz traseira esquerda meio apagada. Rodo com ele há seis anos, mas se eu puser os pés fora daquela porta...
― Isso é só o começo ― disse o cozinheiro, os olhos semicerrados e um tanto vidrados. A coisa deve estar feia, se o rádio parou de funcionar. É apenas o começo.
A garota estava branca como leite.
― Isso não interessa ― disse eu ao cozinheiro. ― Pelo menos por enquanto.
― O que causaria isso? ― indagou o motorista de caminhão, preocupado. ― Tempestades elétricas na atmosfera? Testes nucleares? O quê?
― Talvez estejam zangados ― respondi.
Por volta das sete horas, aproximei-me do cozinheiro.
― Em que condições estamos aqui? Quero dizer, se precisarmos permanecer por algum tempo.
Ele franziu a testa.
― Não muito mal. Ontem foi dia de entregas. Recebemos trezentos bifes para hambúrgueres, frutas e legumes em conserva, cereais, ovos... só temos o leite que está na geladeira, mas a água é do poço. Se for preciso, nós cinco poderemos ficar aqui mais ou menos um mês.
O motorista de caminhão se aproximou e piscou para nós.
― Meus cigarros acabaram. Ora, aquela máquina de cigarros...
― A máquina não é minha ― disse o cozinheiro. ― Não, senhor.
O motorista trazia consigo uma barra de aço que pegara no depósito dos fundos.
Começou a trabalhar na máquina de cigarros.
O rapaz encaminhou-se à iluminada vitrola automática e enfiou uma moeda na fenda.
John Fogarty começou a cantar sobre ter nascido no bayou.
Sentei-me e olhei pela janela. Avistei imediatamente algo que não me agradou. Uma leve pick-up Chevrolet juntara-se à patrulha, como um pônei em meio a grandes cavalos de tração. Observei-a até que ela passou imparcialmente sobre o cadáver da moça do Cadillac. Então, desviei o olhar.
― Eu os fabriquei! ― gritou a garota com súbito desespero. ― Eles tão podem!
O namorado mandou-a calar a boca. O motorista conseguiu arrombar a máquina de cigarros e pegou seis ou oito maços de Viceroy. Distribuiu-os por diversos bolsos e depois abriu um maço. Pela expressão de seu rosto, fiquei em dúvida se ele pretendia fumar os cigarros ou comê-los.
Outro disco começou a tocar na vitrola automática. Às oito e meia, a energia elétrica  acabou.
Quando as luzes se apagaram, a garota gritou ― um grito que cessou bruscamente quando o namorado lhe tapou a boca com a mão. O som da vitrola morreu num lamento grave e arrastado.
― Que diabo! ― disse o motorista de caminhão.
― Cozinheiro! ― chamei. ― Tem velas?
― Acho que sim. Espere... sim, aqui estão algumas.
Levantei-me e fui pegar as velas. Depois de acendê-las, começamos a distribuí-las pelo salão.
― Tomem cuidado ― adverti. ― Se incendiarmos este lugar, será o diabo.
O cozinheiro soltou uma risadinha soturna:
― Você deve saber.
Quando acabamos de colocar as velas, o garoto e a namorada estavam encolhidos, muito juntos, e o motorista se postara à porta dos fundos, observando mais seis caminhões pesados que ziguezagueavam por entre as ilhas de concreto onde se situavam as bombas de gasolina e óleo diesel.
― Isto altera a situação, não é mesmo? ― perguntei.
― Exatamente, se a energia acabou de vez.
― Até que ponto?
― A carne estragará dentro de três dias. Os ovos também. As latas e os cereais não serão problema. Mas isto não é o pior. Sem a bomba, não teremos água.
― Por quanto tempo?
― Sem a bomba? Temos água para uma semana.
― Encha todo o vasilhame que encontrar, até esvaziar a caixa. Onde ficam os sanitários?
Há água potável nas caixas.
― O banheiro dos empregados é aí nos fundos. Mas será preciso sair para chegar aos banheiros dos fregueses.
― Lá no prédio do posto de serviço?
Eu não estava preparado para aquilo. Ainda não.
― Não. Basta sair pela porta lateral e andar ao longo da parede.
― Arranje-me dois baldes.
Ele me trouxe dois baldes galvanizados. O rapaz se aproximou.
― Que estão fazendo?
― Precisamos de água. Toda a que conseguirmos.
― Então, arranje-me um balde.
Entreguei-lhe um dos meus.
― Jerry! ― gritou a pequena. ― Você...
Ele olhou para ela, que calou a boca mas pegou um guardanapo de papel e começou a rasgá-lo nas pontas. O motorista de caminhão fumava um cigarro e sorria para o chão.
Não disse nada.
Fomos à porta lateral pela qual eu entrara naquela tarde e paramos por um instante, observando as sombras que se movimentavam com o deslocamento dos caminhões.
― Agora? ― perguntou o rapaz.
Seu braço roçou no meu e os músculos saltavam e vibravam como arames retesados. Se alguém lhe esbarrasse, ele subiria direto para o céu.
― Relaxe ― disse-lhe eu.
Ele sorriu de leve. Um sorriso amarelo, mas melhor que nada.
― Tudo bem.
Esgueiramo-nos para fora.
O ar da noite refrescara. Grilos cantavam no capim e sapos coaxavam na vala de drenagem. Lá fora, o ronco dos caminhões era mais alto e ameaçador, o ronco de feras.
De dentro, parecia um filme. Aqui fora, era real; a gente podia ser morto.
Deslizamos ao longo da parede lateral de azulejos. Um pequeno beiral proporcionava-nos alguma sombra. Meu Camaro estava imprensado contra a cerca em frente a nós, a luz fraca do letreiro à beira da estrada refletindo-se no metal e nas poças de gasolina e óleo.
― Vá ao banheiro das mulheres ― sussurrei. ― Encha o balde com a água da caixa da privada e espere.
O ronco dos motores diesel não se alterara. Era engraçado: tínhamos a impressão de que os caminhões se aproximavam, mas eram apenas os ecos provocados pelas paredes. A distância até os banheiros era apenas seis metros, mas parecia muito maior.
Ele abriu a porta do banheiro das senhoras e entrou. Passei pela porta e logo entrei no banheiro dos homens. Senti os músculos se relaxarem e soltei o ar dos pulmões num assovio. Avistei-me de relance no espelho, um rosto pálido e tenso, com olhos escuros.
Tirei a tampa de louça da caixa da privada e enchi o balde. Derramei um pouco de água de volta à caixa, para evitar que se entornasse com o movimento do balde e fui até a porta.
― Ei!
― Sim? ― sussurrou ele.
― Está pronto?
― Estou.
Tomamos a sair. Demos talvez seis passos antes que os faróis nos incidissem no rosto.
O caminhão se aproximara sorrateiramente, os grandes pneus quase não rodando sobre o cascalho. Estava à espera e agora saltava contra nós, as lâmpadas elétricas dos faróis brilhando em círculos selvagens, a enorme grade cromada do radiador parecendo rosnar.
O rapaz ficou petrificado, o pavor estampado no rosto, os olhos inexpressivos, as pupilas contraídas ao tamanho de cabeças de alfinete. Dei-lhe um forte empurrão, derramando metade da água do seu balde.
― Corra!
O trovão daquele motor diesel se transformou num grito agudo. Estendi o braço por cima do ombro do rapaz, a fim de abrir a porta, mas antes que eu pudesse alcançá-la ela foi aberta por dentro. O garoto mergulhou por ela e eu o segui de perto. Olhei para trás a fim de ver o caminhão ― um enorme Peterbilt ― beijar de raspão a parede externa azulejada, arrancando trechos irregulares do azulejo. Escutei um barulho de atordoar os ouvidos, como dedos gigantescos arranhando um quadro-negro. Então, o pára-lamas dianteiro e o canto da grade do radiador bateram na porta ainda aberta, lançando uma chuva de estilhaços de vidro blindado e quebrando as dobradiças de aço inoxidável como se rasgassem papel higiênico. A porta voou pela noite como algo num quadro de Dali e o caminhão acelerou o motor em direção ao estacionamento da frente, o escapamento pipocando como uma rajada de metralhadora. Produzia um som raivoso de desapontamento.
O garoto colocou o balde no chão e se deixou cair nos braços da namorada, trêmulo.
Meu coração batia com força no peito e minhas pernas pareciam feitas de água. E, por falar em água, tínhamos conseguido voltar com o total de um balde e um quarto. Mal parecia valer o risco.
― Quero bloquear aquela porta ― disse eu ao cozinheiro. ― Como o faremos?
― Bem...
O motorista do caminhão interpôs:
― Por quê? Um daqueles caminhões enormes não conseguiria enfiar uma roda por ali.
― Não são os enormes caminhões que me preocupam.
O motorista começou a procurar um cigarro nos bolsos.
― Temos algumas folhas de zinco no depósito de suprimentos ― disse o cozinheiro. ― O patrão ia fazer um barracão para guardar o gás de butano.
― Vamos tapar a porta com elas e escorá-las com os cavaletes dos reservados.
― Isso ajudará ― concordou o motorista.
O trabalho durou cerca de uma hora e, no final, todos nós participamos dele, inclusive a garota. O resultado foi razoavelmente sólido. Naturalmente, razoavelmente sólido não seria o bastante se algo batesse ali a toda a velocidade. Creio que todos nós tínhamos consciência disto.
Ainda restavam três reservados alinhados ao longo da grande janela da frente e sentei-me num deles. O relógio na parede atrás do balcão parara às 8:32, mas calculei que devia ser dez horas. Lá fora, o caminhão rondava, roncando. Alguns partiram com destino ignorado, para cumprirem outras missões; outros haviam chegado. Agora, havia três pick-ups circulando com ar importante entre seus irmãos maiores.
Comecei a cochilar e, em vez de contar carneiros, contei caminhões. Quantos havia no Estado? Quantos no país? Carretas, pick-ups, pranchões, basculantes, caminhões comuns, caminhões militares, caminhões às dezenas de milhares. E ônibus. A visão de pesadelo de um ônibus urbano, duas rodas na sarjeta e duas na calçada, rugindo e ceifando os pedestres apavorados como se fossem pinos de boliche.
Livrei-me da idéia, estremecendo, e caí num sono leve e intranqüilo.
Devia ser alta madrugada quando Snodgrass começou a gritar. A fina lua nova se erguera no céu e brilhava geladamente através de uma alta camada de nuvens. Um novo som se juntara ao barulho lá fora, fazendo contraponto ao rugido grave e preguiçoso dos grandes caminhões. Olhei para lá e avistei uma enfardadeira de feno circulando perto do letreiro apagado. O luar se refletia nos cones afiados do rolo giratório.
O grito veio outra vez, inequivocamente da vala de drenagem:
― Socorro... socorro!
― Que foi isso?
Era a garota quem perguntava. Nas sombras, seus olhos estavam esbugalhados e ela parecia terrivelmente assustada.
― Nada ― respondi.
― Socorro... socorro!
― Ele está vivo ― sussurrou a pequena. ― Oh, Deus, está vivo.
Eu não precisava vê-lo. Podia imaginá-lo perfeitamente bem. Snodgrass caído meio para dentro e meio para fora da vala de drenagem, a espinha e as pernas quebradas, o terno cuidadosamente passado sujo de lama, o rosto pálido e arquejante voltado para a lua indiferente...
― Não escutei nada ― declarei. ― Você escutou?
Ela me encarou:
― Como pode ser capaz disto? Como?
― Ora, se você o acordasse, ele talvez escutasse alguma coisa repliquei, esticando o polegar na direção do rapaz. ― Talvez ele fosse até lá. Você gostaria?
Suas feições começaram a tremer e contrair-se, como se costuradas por uma agulha invisível.
― Nada ― disse ela. ― Não há nada lá fora.
Voltou para perto do namorado e apoiou a cabeça no peito dele. Mesmo adormecido, ele a abraçou.
Ninguém mais acordou. Snodgrass gritou, chorou e berrou durante muito tempo.
Depois, parou.
Raiar do dia.
Outro caminhão chegou, uma enorme jamanta para transporte de automóveis. Logo um trator tipo bulldozer se juntou a ele. Aquilo me assustou.
O motorista de caminhão se aproximou e me beliscou o braço.
― Venha até os fundos ― sussurrou, excitado. Os outros ainda dormiam. ― Venha ver uma coisa.
 Acompanhei-o ao depósito de suprimentos. Lá fora, cerca de dez caminhões patrulhavam a parte dos fundos. A princípio, não percebi qualquer novidade.
― Está vendo? ― perguntou ele, apontando. ― Bem ali.
Então, eu vi. Uma das pick-ups estava parada. Imóvel como uma pedra; desprovida de toda e qualquer ameaça.
― Sem combustível?
― Exato, companheiro. E eles não podem reabastecer-se sozinhos. Ganhamos a parada.
Tudo que temos a fazer é esperar.
Sorriu e pegou um cigarro.
Era cerca de nove horas e eu comia um pedaço do pastelão da véspera à guisa de café da manhã quando a buzina de ar comprimido começou ― toques prolongados e agudos, que sacudiam o cérebro da gente. Fomos às janelas e olhamos para fora. Os caminhões estavam imóveis, os motores em marcha-lenta. Uma enorme carreta Reo com cabine vermelha viera quase até a estreita faixa de grama que separava a lanchonete do estacionamento. Àquela distância, a grade quadrada do radiador era imensa e assassina.
Os pneus eram da altura do peito de um homem.
A buzina tornou a soar; toques agudos e famintos, que viajavam em linha reta e ecoavam de volta. Havia um padrão definido. Curtos e longos, em alguma espécie de ritmo.
― Isso é código Morse! ― exclamou de repente o rapaz, que se chamava Jerry.
O motorista de caminhão se voltou para ele:
― Como sabe?
O rapaz corou um pouco:
― Aprendi na tropa de escoteiros.
― Você? ― perguntou o motorista. ― Você? Puxa!
E sacudiu a cabeça.
― Não interessa ― interpus. ― Lembra-se o suficiente para...
― Claro. Deixem-me escutar. Têm um lápis?
O cozinheiro entregou-lhe um lápis e ele começou a escrever letras num guardanapo de papel. Depois de algum tempo, parou de escrever.
― Está apenas repetindo incessantemente a palavra "Atenção." Esperem.
Esperamos. A buzina continuava a emitir toques longos e curtos no ar silencioso da manhã. Então, o padrão se alterou e o rapaz recomeçou a escrever. Debruçados por cima de seus ombros, vimosa mensagem tomar forma: "Alguém deve bombear combustível.
Esse alguém não será molestado. Todo o combustível deve ser bombeado. Isso será feito agora. Alguém tem que bombear combustível agora."
Os toques de buzina continuaram, mas o rapaz parou de escrever.
― Está apenas repetindo "Atenção", outra vez ― informou ele.
O caminhão repetiu inúmeras vezes a mensagem. Não gostei do aspecto das palavras, escritas no guardanapo com letras de forma. Pareciam máquinas, impiedosas, implacáveis. Não haveria meio-termo com aquelas palavras. A gente obedecia, ou não.
― Bem ― disse o rapaz ―, o que faremos?
― Nada ― replicou o motorista de caminhão.
Tinha o rosto excitado, mudando constantemente de expressão.
― Só precisamos esperar ― prosseguiu. ― Todos eles devem ter pouco combustível. Um dos pequenos já parou, lá nos fundos. Só precisamos...
A buzina cessou. O caminhão deu marcha à ré, juntando-se aos colegas. Aguardavam em semicírculo, com os faróis apontados para nós.
― Há um bufdozer lá fora ― anunciei.
Jerry olhou para mim:
― Acha que demolirão o prédio?
― Sim.
Ele olhou para o cozinheiro.
― Não podem fazer isso, podem?
O cozinheiro sacudiu os ombros.
― Devemos votar ― disse o motorista. ― Nada de chantagem, com os diabos! Só precisamos esperar.
Era a terceira vez que repetia aquela frase, como um encantamento:
― Muito bem ― repliquei. ― Vote.
― Espere ― disse imediatamente o motorista.
― Acho que devemos reabastecê-los ― declarei. ― Podemos esperar por uma oportunidade melhor de fugirmos. Cozinheiro?
― Ficamos aqui dentro ― respondeu ele. ― Querem ser escravos deles? É isso que acabará acontecendo. Querem passar o resto da vida trocando filtros de óleo cada vez que... uma daquelas coisas tocar a buzina? Eu não.
Olhou sombriamente pela janela, concluindo:
― Eles que fiquem sem combustível.
Olhei para o rapaz e a moça.
― Acho que ele tem razão ― disse Jerry. ― É a única maneira de detê-los. Se alguém fosse socorrer-nos, já teria chegado. Deus sabe o que está acontecendo em outros lugares.
E a garota, com Snodgrass no olhar, confirmou com a cabeça e aconchegou-se ao rapaz.
― É isso aí, então ― disse eu.
Fui à máquina de cigarros e peguei um maço sem olhar a marca. Havia um ano que eu deixara de fumar, mas aquela me parecia uma boa ocasião para recomeçar. A fumaça me ardeu nos pulmões.
Vinte minutos se passaram. Os caminhões aguardavam lá fora. Nos fundos, começavam a fazer filas nas bombas de combustível.
― Acho que foi tudo um blefe ― disse o motorista de caminhão. Apenas...
Então, soou um ronco mais alto, áspero e sincopado, o rugido de um motor se acelerando, diminuindo e tornando a acelerar-se. O bufdozer.
Brilhava ao sol como uma jaqueta amarela, um Caterpillar com barulhentas esteiras de aço. Vomitava fumaça negra pelo cano de descarga vertical ao girar para ficar de frente para nós.
― Vai atacar ― disse o motorista, com uma expressão de total surpresa estampada no rosto. ― Vai atacar!
― Recuem ― disse eu. ― Para trás do balcão.
O trator ainda acelerava o motor. As alavancas de controle movimentavam-se sozinhas.
De repente, a lâmina se ergueu, uma pesada curva de aço com torrões de terra ressecados. O calor fazia tremer o ar acima do cano de descarga em chaminé. Com um tremendo rugido de poder, o bulldozer avançou diretamente para nós.
― O balcão! ― gritei, dando um empurrão no motorista de caminhão.
Todos se moveram a um só tempo.
Havia uma estreita calçada de concreto entre a grama e o cascalho do estacionamento. O trator avançou por cima dela, erguendo momentaneamente a lâmina, e depois esbarrou de frente na parede. A vidraça explodiu para dentro com um barulho estrondoso de tosse e a esquadria de madeira rompeu-se em lascas. Um dos globos do teto caiu, espalhando mais vidro partido. A louça caía das prateleiras. A garota gritava mas o som quase se perdia sob o rugido constante e poderoso do Caterpillar.
O trator deu marcha à ré, passando ruidosamente pela castigada faixa de grama, e tornou a ataca, deslocando e espatifando os reservados que restavam. A vitrine de salgadi-nhos caiu do balcão, lançando pedaços de pastelão a rodopiarem pelo chão.
O cozinheiro estava agachado com os olhos fechados e o rapaz abraçava a garota. O motorista tinha os olhos esbugalhados de pavor.
― Precisamos detê-los ― balbuciou ele. ― Diga-lhes que obedeceremos, que faremos tudo...
― Um pouco tarde demais, não acha?
O Caterpillar tornou a recuar, preparando-se para nova carga. Novos arranhões em suas lâminas brilhavam ao sol. Tomou a avançar com um tremendo rugido e, desta feita, derrubou a coluna situada à esquerda do que antes era a janela. Aquela parte do telhado ruiu estrondosamente, levantando uma nuvem de pó de reboco.
O trator recuou, libertando-se dos escombros. Atrás dele, vi o grupo de caminhões que aguardavam o resultado.
Agarrei o cozinheiro.
― Onde estão os barris de óleo?
Os fogões da cozinha funcionavam a gás de butano contido em botijões, mas eu vira os duetos de uma fornalha de aquecimento ambiente.
― Nos fundos do depósito ― disse ele.
Segurei o braço do rapaz.
― Venha comigo.
Levantamo-nos e corremos para o depósito. O trator tornou a atacar e o prédio estremeceu. Mais duas ou três investidas e o Caterpillar conseguiria chegar ao balcão para tomar uma xícara de café.
Havia dois grandes tambores de óleo com saídas para a fornalha e torneiras de controle.
Perto da porta dos fundos estava uma caixa com vidros de suco de tomate vazios.
― Pegue aqueles vidros, Jerry.
Enquanto ele obedecia, tirei a camisa e rasguei-a em tiras. O trator continuava a atacar, cada investida acompanhada pelo barulho de mais destruição.
Usei as torneiras para encher quatro vidros e Jerry enfiou nos gargalos tiras da camisa.
― Joga futebol? ― perguntei.
― Joguei no ginásio.
― Muito bem. Faça de conta que está avançando para a linha de gol.
Voltamos à lanchonete. Toda a parede da frente estava aberta ao ar livre. Cacos de vidro faiscavam como diamantes. Uma pesada viga caíra diagonalmente através da abertura.
O trator recuava para retirá-la e refleti que desta vez ele viria sem parar, arrancando os tamboretes e demolindo o próprio balcão.
Ajoelhamo-nos, estendendo as garrafas.
― Acenda ― disse eu ao motorista.
Ele tirou os fósforos do bolso, mas suas mãos tremiam tanto que os deixaram cair ao chão. O cozinheiro os apanhou, riscou um e as tiras de camisa se incendiaram.
― Depressa ― disse eu.
Corremos, o rapaz um pouco à frente. Cacos de vidro estalavam sob nossos sapatos. Um cheiro quente de óleo pairava no ar. Tudo parecia muito nítido e audível.
O trator avançou.
O rapaz esgueirou-se sob a viga e ficou silhuetado em frente da pesada lâmina de aço temperado. Fui para a direita. O primeiro lançamento de Jerry foi curto. O segundo atingiu a lâmina e as chamas se espalharam inofensivamente.
Ele tentou dar meia-volta mas o bulldozer o alcançou, como um rolo compressor com quatro toneladas de aço. O rapaz levantou os braços e desapareceu, esmagado.
Fiz um giro e atirei um dos vidros na cabine aberta e o outro no motor. Ambos explodiram ao mesmo tempo, numa enorme cortina de chamas.
Por um instante, o barulho do motor do bulldozer ergueu-se num grito quase humano de dor e raiva. O trator descreveu uma curva louca, destruindo o canto esquerdo da lanchonete, e se dirigiu, como um bêbado, para a vala de drenagem.
As lagartas de aço estavam sujas de sangue e onde o rapaz estivera existia algo semelhante a uma toalha amarrotada e embolada.
O trator quase chegou à vaia, com as labaredas saindo por baixo do capô do motor e do interior da cabine. Então, explodiu num gêiser de fogo.
Recuei e quase tombei sobre uma pilha de escombros. Senti um cheiro quente que não era só de óleo. Cabelos incendiados. Eu estava em chamas.
Agarrei uma toalha de mesa, comprimi-a contra a cabeça, corri para trás do balcão e mergulhei a cabeça na pia com força suficiente para rachar o fundo. A pequena gritava incessantemente o nome de Jerry, numa litania aguda e insana.
Virei-me e vi a imensa jamanta avançando lentamente contra a indefesa frente da lanchonete.
O motorista de caminhão gritou e correu para a porta lateral.
― Não! ― berrou o cozinheiro. ― Não faça isso...
Mas o motorista passou pela porta e correu na direção da vala de drenagem, em direção ao campo aberto existente além desta.
O caminhão devia estar de sentinela fora do campo de visão daquela porta lateral ― um pequeno furgão com o letreiro "Lavanderia Wong" pintado na parte do lado. Atropelou o motorista antes que nos déssemos conta disso. Então, foi-se e só o motorista ficou, contorcido no cascalho. Seus sapatos tinham sido atirados à distância.
A jamanta avançou vagarosamente através da faixa de concreto e da grama, passando sobre os restos mortais do rapaz e parando com o enorme focinho enfiado na lanchonete.
A buzina de ar emitiu um súbito e ensurdecedor toque agudo, seguido por outro e mais outro.
― Pare! ― choramingou a garota. ― Pare... oh, por favor, pare!
Mas as buzinadas prosseguiram durante muito tempo. Levei apenas um minuto para identificar o ritmo. Era o mesmo de antes: a jamanta queria combustível para si e seus colegas.
― Eu irei ― disse eu ao cozinheiro. ― As bombas estão destrancadas? O cozinheiro meneou afirmativamente a cabeça. Parecia ter envelhecido cinqüenta anos.
― Não! ― gritou a pequena, atirando-se sobre mim. ― Você tem que detê-los! Quebre-os, incendeie-os...
Sua voz tremeu e morreu na garganta, produzindo um engasgado soluço de dor e tristeza.
O cozinheiro segurou-a. Contornei a extremidade do balcão, abrindo caminho por entre as ruínas, e saí pela porta dos fundos do depósito de suprimentos. Meu coração batia com muita força quando saí para o sol quente. Queria outro cigarro, mas não se fuma perto de bombas de combustível.
Os caminhões continuavam alinhados em fila. O furgão da lavanderia postara-se em frente a mim, no outro lado do cascalho, observando-me como um cão de fila agachado, rosnando e grunhindo. O menor gesto em falso e ele me esmagaria. O sol se refletia no pára-brisa vazio. Era como olhar para o rosto de um imbecil.
Puxei a alavanca da bomba para a posição "Ligada" e peguei a mangueira; desatarraxei a tampa do primeiro tanque e comecei a bombear combustível.
Levei meia hora para esvaziar o primeiro tanque subterrâneo e depois fui para a segunda ilha de bombas. Alternava-me entre gasolina e óleo diesel. Os caminhões enfileiravam-se interminavelmente. Agora, eu começava a compreender. Começava a ver. No país inteiro as pessoas faziam a mesma coisa que eu ou jaziam mortas como o motorista de caminhão, com os sapatos atirados longe e grandes marcas de pneus na barriga esmagada.
Então, o segundo tanque secou e passei para o terceiro. O sol castigava-me como uma marreta e minha cabeça principiava a doer por causa dos vapores do combustível. Tinha calos na pele macia entre o polegar e o indicador. Calos de sangue. Mas os caminhões nada sabiam a respeito. Saberiam a respeito de tubulações com vazamentos, juntas queimadas, eixos grimpados, mas não a respeito de calos de sangue, insolação ou necessidade de gritar. Só precisavam saber uma coisa a respeito de seus antigos donos: eles sangravam. Nós sangrávamos.
O último tanque se esvaziou e larguei a mangueira no chão. Ainda havia mais caminhões, formando uma fila que dobrava a esquina do prédio. Virei a cabeça para aliviar uma cãibra no pescoço e esbugalhei os olhos. A fila saía pela frente do estacionamento e continuava pela estrada até perder de vista, dupla, tripla. Era como um pesadelo da Los Angeles Freeway na hora do rush. O horizonte parecia tremer e dançar com os gases de escapamento; o ar fedia com a poluição.
― Não ― disse eu. ― Acabou o combustível. Até a última gota, pessoal.
Um motor roncou mais forte, pesado, uma vibração que abalava os dentes da gente. Um enorme caminhão prateado se aproximava, um caminhão-tanque. Trazia escrito na lateral: "Use Phillips 66 ― O Combustível dos Jatos!"
Uma pesada mangueira caiu da traseira.
Fui até lá, peguei-a, abri a tampa do primeiro tanque subterrâneo e atarraxei a boca da mangueira. O caminhão começou a bombear combustível para o depósito. O fedor de petróleo infiltrou-se em mim ― o mesmo cheiro que os dinossauros deviam sentir quando se atolavam em poças de alcatrão. Enchi os outros dois tanques subterrâneos e voltei ao trabalho.
Minha consciência começou a falhar até que perdia noção do tempo e do número de caminhões. Eu desenroscava a tampa, enfiava a mangueira no buraco, bombeava até que o líquido quente e pesado começasse a transbordar e recolocava a tampa. Os calos de sangue estouraram e o pus me escorria até os pulsos. A cabeça latejava como um dente podre e o estômago se revoltava, indefeso contra os vapores fétidos dos hidrocarbonetos.
Eu ia desmaiar. Ia desmaiar e isto seria o meu fim. Continuaria a bombear até cair.
Então, senti as mãos escuras do cozinheiro.
― Vá para dentro ― disse ele. ― Descanse. Cuidarei disto até o anoitecer. Procure dormir.
Entreguei-lhe a bomba.
Mas não consigo dormir.
A garota está adormecida, estendida no balcão com uma toalha por travesseiro, e seu rosto não se relaxa nem durante o sono. É o rosto sem tempo, sem idade, da bruxa guerreira. Vou acordá-la daqui a pouco. Já está anoitecendo e faz cinco horas que o cozinheiro está lá fora.
E os caminhões ainda continuam a chegar. Olho pela janela quebrada e vejo que seus faróis se estendem por dois quilômetros e meio, ou mais, cintilando como safiras amarelas na crescente penumbra. Devem estar enfileirados até a rodovia, talvez além dela.
A garota terá que fazer o seu turno, também. Mostrar-lhe-ei como. Ela vai dizer que não consegue, mas conseguirá. Quer continuar viva.
Querem ser escravos deles? ― perguntara o cozinheiro. É isso que acabará acontecendo.
Querem passar o resto da vida trocando filtros de óleo cada vez que uma daquelas coisas tocar a buzina?
Poderíamos fugir, talvez. Agora, seria fácil chegar à vala de drenagem, do jeito como eles estão enfileirados. Correr através dos campos, passando pelos locais pantanosos onde os caminhões atolariam como mastodontes, e ...
... voltar às cavernas!
Desenhar na pedra com carvão. Este é o deus-lua. Isto é uma árvore. Isto é um caminhão Mack matando um caçador.
Nem mesmo isso. Atualmente, grande parte do mundo está pavimentada. E para enfrentar os campos e pântanos existem tanques, half-tracks, viaturas equipadas com lasers, masers, radares guiados pelo calor. Pouco a pouco, eles conseguirão transformar o planeta no mundo que desejam.
Posso imaginar grandes comboios de caminhões basculantes aterrando o grande Pântano Okefenokee com areia, bulldozers rasgando os parques nacionais e as florestas, aplanando a terra, compactando-a numa vasta superfície plana. Então, os caminhões chefes chegando...
Mas são máquinas. Não importa o que lhes tenha acontecido, a consciência de massa que tenham adquirido, não se podem reproduzir. Dentro de cinqüenta ou sessenta anos serão carcaças enferrujadas, desprovidas de toda e qualquer ameaça, sucata imóvel para ser apedrejada e cuspida pelos homens.
E se fecho os olhos agora, posso ver as linhas de montagem em Detroit, Dearborn, Youngstown e Mackinac, caminhões novos sendo montados por operários que não batem cartões de ponto, mas simplesmente caem mortos e são substituídos.
O cozinheiro já está começando a cambalear um pouco. Além disso, é idoso. Preciso acordar a garota.
Dois aviões deixam rastros de vapor prateado acima do horizonte oriental que vai escurecendo.

Eu gostaria de acreditar que existem pessoas a bordo deles. 


KING, Stephen. Sombras da noite. 1.ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008.

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