Campo de batalha, de Stephen King
― Sr. Renshaw?
A voz do recepcionista deteve-o a meio caminho do
elevador e Renshaw voltou-se, impaciente, passando a maleta de vôo de uma mão
para outra. O envelope em seu bolso, cheio de notas de vinte e cinqüenta
dólares, estalou audivelmente. O trabalho correra bem e o pagamento fora
excelente ― mesmo depois da dedução dos 15% de comissão cobrados pela
Organização como taxa de agenciamento. Agora, tudo que ele queria era um
chuveiro quente, um gim-tônica e dormir.
― O que é?
― Uma encomenda, senhor. Quer assinar o recibo, por
favor?
Renshaw assinou e fitou pensativamente o pacote
retangular. Seu nome e endereço estavam escritos na etiqueta gomada, numa
caligrafia inclinada que lhe parecia familiar.
Balançou o pacote sobre a superfície imitando mármore
do balcão e algo produziu um leve ruído metálico lá dentro.
― Quer que eu mande levar lá em cima, Sr. Renshaw?
― Não. Está bem assim.
O pacote tinha cerca de meio metro de comprimento e se
ajustava um tanto desajeitadamente sob seu braço. Renshaw deixou-o sobre o
espesso tapete que cobria o chão do elevador e girou a sua chave na abertura
correspondente ao apartamento de cobertura, que ficava acima dos botões dos
andares normais. O elevador subiu, silencioso e macio. Renshaw fechou os olhos
e reviu o trabalho na tela escura de sua mente.
Primeiro, como sempre, um telefonema de Cal Bates:
― Está disponível, Johnny?
Ele estava disponível duas vezes por ano, preço mínimo
dez mil dólares. Era muito competente, muito confiável, mas o que seus clientes
realmente pagavam era pelo infalível talento de predador. John Renshaw era um
gavião humano, condicionado tanto pela genética como pelo meio ambiente para
desempenhar de modo soberbo duas funções: matar e sobreviver.
Depois do telefonema de Cal Bates, o envelope de papel
pardo aparecera na caixa postal de Renshaw. Um nome, um endereço, uma
fotografia. Tudo foi guardado na memória; depois, as cinzas do envelope e seu
conteúdo foram para a lixeira.
Desta vez, o resto fora o de um pálido homem de
negócios de Miamì, chamado Hans Morris, fundador e proprietário da Fábrica de
Brinquedos Morris. Alguém desejava tirar Morris do caminho e procurara a
Organização. A Organização, na pessoa de Calvin Bates, falara com John Renshaw.
Bum! É favor não enviar flores.
As portas do elevador se abriram e ele pegou o pacote
do chão, saindo para o hall.
Destrancou o apartamento e entrou. Àquela hora do dia,
pouco depois das três da tarde, a espaçosa sala de visitas estava banhada pela
luz do sol de abril. Renshaw parou um instante, saboreando-a. Em seguida,
colocou o pacote sobre a mesinha ao lado da porta e foi ao terraço.
Abriu a porta corrediça de vidro e saiu para o ar
livre. Estava frio e o vento penetrava através de seu sobretudo fino. Não
obstante, parou um momento, olhando a cidade da mesma maneira que um general
observaria um país capturado. O tráfego percorria as ruas como besouros. Ao
longe, quase escondida pela névoa da tarde, a Ponte da Baía faiscava como a
miragem de um louco. A leste, quase perdidos por detrás dos arranha-céus do
centro da cidade, os cortiços atulhados de gente, com suas florestas de antenas
de TV. Era melhor aqui. Melhor que nas sarjetas.
Renshaw voltou à sala, fechou a porta de vidro e foi
ao banheiro para um prolongado banho de chuveiro quente.
Quarenta minutos depois, quando se sentou para fitar o
pacote com um drinque na mão, as sombras haviam avançado até a metade do tapete
cor de vinho e o melhor da tarde já se fora.
Era uma bomba.
Claro que não era, mas a gente procedia como se fosse.
Por esse motivo ele se mantivera ereto e bem nutrido, enquanto outros haviam
ido para aquela grande aglomeração de desempregados lá no céu.
Se era uma bomba, não tinha relógio. Totalmente
silenciosa; impassível e enigmática.
De todo modo, o explosivo plástico era mais usado
atualmente. Menos temperamental que as molas de relógio fabricadas pela
Westclox e Big Ben.
Renshaw olhou para o carimbo do correio. Miami, 5 de
abril. Há cinco dias. Portanto, a bomba não era de tempo. Nesse caso, teria
explodido no cofre do hotel.
Miami. Sim. E aquela caligrafia inclinada. Havia uma
fotografia emoldurada sobre a mesa do pálido homem de negócios. A foto era de
uma velha ainda mais pálida, usando um xale. A dedicatória na parte inferior
dizia: "Os melhores votos da garota de idéias brilhantes ― Mamãe."
Que tipo de idéia brilhante é esta, Mamãe? Uma
armadilha assassina feita em casa?
Renshaw olhou o pacote com total concentração, imóvel,
as mãos cruzadas. Indagações estranhas, tais como a maneira pela qual a garota
de idéias brilhantes de Morris descobrira seu endereço, não lhe ocorreram.
Ficavam para mais tarde, para Cal Baker.
Agora, não importavam.
Com um movimento repentino, quase distraído, tirou da
carteira um pequeno calendário de plástico e o inseriu habilmente sob o
barbante grosso que dava várias voltas sobre o papel-pardo do embrulho.
Enfiou-o por baixo da fita gomada que prendia uma extremidade do papel. A ponta
do papel se soltou, relaxando-se de encontro ao barbante.
Renshaw aguardou algum tempo, observando. Depois,
debruçou-se para perto do pacote e cheirou. Papelão, papel, barbante. Nada
mais. Andou em volta do embrulho, agachouse com facilidade e repetiu o
processo. A penumbra invadia o apartamento com dedos cinzentos e sombrios.
Uma das pontas do papel escapou do barbante, deixando
à mostra uma caixa de cor verde fosca. Metal. Com dobradiças. Renshaw tirou um
canivete do bolso e cortou o barbante. Este caiu e alguns movimentos com a
ponta da lâmina abriram o papel, revelando a caixa.
Era verde com letras pretas. Na frente, pintadas em
branco, estavam as palavras: BAÚ DO SOLDADO JOE. Logo abaixo: 20 Infantes, 10
Helicópteros, 2 Artilheiros c/ Fuzis Automáticos, 2 Atiradores de Bazuca, 2
Padioleiros, 4 Jipes. Mais abaixo: Decalque de Bandeira. Ainda mais abaixo, no
canto: Fábrica de Brinquedos Morris, Miami, Flórida.
Renshaw estendeu a mão para tocar na caixa, mas tornou
a encolhê-la. Algo se mexeu dentro do baú.
Renshaw levantou-se sem pressa e recuou através da
sala, na direção da cozinha e do corredor. Acendeu as luzes.
O baú militar do tipo usado no Vietnã estava
balançando, fazendo chocalhar o papel pardo por baixo dele. De repente,
ultrapassou a posição de equilíbrio e caiu no tapete com um baque surdo,
ficando em pé sobre uma das extremidades. A tampa com dobradiças se entreabriu,
uma fresta de cerca de cinco centímetros.
Pequenos soldados de infantaria, com três centímetros
e meio de altura, começaram a rastejar para o tapete. Renshaw os observava sem
pestanejar. Sua mente não fazia qualquer esforço para enfrentar o aspecto real
ou irreal do que ele via ― só se preocupava com as possíveis conseqüências para
sua sobrevivência.
Os soldados usavam minúsculos uniformes de combate,
capacetes e mochilas. Traziam pequenos fuzis a tiracolo. Dois deles olharam
rapidamente através da sala na direção de Renshaw. Seus olhos, não maiores que
pontas de lápis, brilhavam.
Cinco, dez, doze, todos os vinte. Um deles comandava
os outros por meio de gestos.
Alinharam-se ao longo da fresta que a queda abrira na
tampa da caixa metálica e começaram a empurrar. A fresta começou a aumentar.
Renshaw pegou uma das grandes almofadas do sofá e se
encaminhou para eles. O oficial em comando virou-se e gesticulou. Os outros
giraram e empunharam os fuzis.
Renshaw ouviu leves ruídos, quase como estalidos, e
sentiu-se repentinamente picado por abelhas.
Golpeou com a almofada, que atingiu os soldadinhos, jogando-os
no tapete. Então, acertou na caixa, escancarando-a. Como insetos, produzindo um
zumbido agudo, uma esquadrilha de helicópteros em miniatura, pintados de
verde-oliva, levantou vôo da caixa
Leves sons ― puft! puft! ― chegaram aos ouvidos de
Renshaw e este viu clarões de disparos, pequenos como cabeças de alfinete,
saindo das portas abertas dos helicópteros.
Pontas de agulha picaram-lhe a barriga, o braço
direito, o lado do pescoço. Levantou a mão e pegou um dos helicópteros ― uma
repentina dor nos dedos; sangue começando a brotar. As pás das hélices
tinham-lhe cortado a carne até os ossos, em lanhos diagonais que sangravam. Os
demais aparelhos voaram para fora de seu alcance, rodeando-o como libélulas. O
helicóptero atingido caiu no tapete e permaneceu imóvel.
Uma súbita dor aguda no pé fez Renshaw gritar. Um dos
infantes estava em pé no seu sapato, enfiando-lhe a baioneta no pé. O rostinho
minúsculo olhava para cima, sorridente.
Renshaw desferiu-lhe um pontapé e o pequeno corpo voou
através da sala, espatifando-se contra a parede. Não deixou sangue, mas uma
viscosa mancha vermelha. Ocorreu uma pequena explosão e uma dor cruciante o
atingiu na coxa. Um dos atiradores de bazuca saíra do baú. Um tênue filete de
fumaça se erguia preguiçosamente da boca da arma. Renshaw baixou os olhos e viu
um buraco negro e fumegante nas calças, do tamanho de uma moeda de vinte e
cinco centavos. A pele por baixo estava chamuscada.
O pequeno filho de uma puta atirou em mim!
Renshaw virou-se e correu para o corredor, entrando em
seu quarto. Um dos helicópteros passou-lhe rente à bochecha, as hélices
zumbindo. O leve matraquear de um fuzil automático. Depois, afastou-se.
O revólver sob o travesseiro de Renshaw era um 44
Magnum, com potência bastante para abrir um buraco do tamanho de dois punhos
cerrados em qualquer coisa que acertasse. Renshaw virou-se, empunhando a arma
com ambas as mãos. Compreendeu friamente que estaria atirando contra um alvo
móvel não muito maior que uma lâmpada voadora.
Dois dos helicópteros entraram zumbindo no quarto.
Sentado na cama, Renshaw disparou uma vez. Um dos helicóteros explodiu,
pulverizado. Com este, são dois, pensou Renshaw. Apontou para o segundo...
apertou o gatilho...
Emperrou! Diabo, emperrou!
O helicóptero mergulhou em direção a ele num súbito
arco mortífero, as hélices zumbindo com uma velocidade incrível. Renshaw viu de
relance um dos atiradores de fuzil automático agachado perto da porta do
aparelho, disparando a arma em rajadas curtas e letais. Então, atirou-se ao
chão e rolou.
Meus olhos! O miserável apontava contra os meus olhos!
Parou de rolar deitado de costas junto à parede
oposta, empunhando o revólver à altura do peito. Mas o helicóptero se afastava.
Deu a impressão de parar um instante no ar e inclinar-se em reconhecimento ao
superior poder de fogo de Renshaw. Depois, desapareceu na direção da sala de
visitas.
Renshaw levantou-se, fazendo uma careta quando apoiou
o peso do corpo na perna ferida, que sangrava abundantemente. E por que não?
refletiu ele sombriamente. Não é todo mundo que se vê atingido à queima-roupa
por uma bazuca e vive para contar a estória.
Então, Mamãe era a garota das idéias brilhantes, hem?
Era tudo isso e ainda mais.
Renshaw tirou a fronha de um travesseiro e rasgou-a
para improvisar uma atadura.
Depois, pegou o espelho de barbear-se que estava em
cima da cômoda e foi à porta do corredor. Ajoelhando-se, empurrou o espelho
pelo tapete, formando um ângulo, e espiou.
Com os diabos! Os soldados estavam acampando perto do
baú. Os homenzinhos em miniatura corriam de um lado para outro, armando
barracas. Jipes com dois centímetros de altura rodavam com ar imponente. Um
padioleiro cuidava do soldado que Renshaw atingira com o pontapé. Os oito
helicópteros restantes davam cobertura aérea ao acampamento, voando em círculos
à altura da mesinha de centro.
De repente, eles perceberam o espelho e três dos
infantes se apoiaram sobre um joelho e começaram a atirar. Segundos depois, o
espelho se quebrou em quatro pedaços.
Está bem, está bem, então.
Renshaw voltou à cômoda e pegou a pesada caixa de
miudezas de mogno que Linda lhe dera no Natal. Sopesou-a, meneou
afirmativamente a cabeça, foi até a porta e saiu de repente para o corredor.
Contraiu-se e atirou a caixa como um lançador de beisebol. A caixa descreveu
uma trajetória certeira e esmagou soldadinhos como uma bola de boliche
derrubando os pinos. Um dos jipes capotou duas vezes. Renshaw avançou até a
porta da sala, mirou num dos soldados caídos e atirou.
Vários dos outros se tinham recobrado. Alguns estavam
ajoelhados e atiravam formalmente. Outros procuraram abrigo. Ainda outros
voltaram ao interior do baú.
As picadas de abelha começaram a atingir as pernas e
torso de Renshaw, mas nenhuma delas o pegou acima da caixa torácica. Talvez a
distância fosse demasiada. Não importava; ele não estava disposto a se deixar
rechaçar. Agora, era pra valer.
Errou o tiro seguinte ― eles eram tão miudinhos ― mas
o outro derrubou um soldado, partindo-o em pedaços.
Os helicópteros zumbiam ferozmente em direção a ele.
Então, as minúsculas balas começaram a atingi-lo no rosto, acima e abaixo dos
olhos. Acertou o helicóptero da frente, depois o segundo. Pontadas de dor
turvaram-lhe os olhos.
Os seis helicópteros remanescentes se afastaram em
dois grupos de três. O rosto de Renshaw estava molhado de sangue e ele o
enxugou com o antebraço. Estava pronto para recomeçar a atirar, mas fez uma
pausa. Os soldados que haviam recuado para o interior do baú estavam puxando
algo para fora. Algo que parecia...
Houve um silvo cegante de fogo amarelo e uma súbita
explosão de madeira e reboco produziu-se na parede à esquerda de Renshaw... um
lançador de foguetes!
Renshaw disparou um tiro apressado contra a arma e
errou. Girando nos calcanhares, correu para o banheiro na extremidade oposta do
corredor. Bateu a porta e trancou-a. No espelho do banheiro, um índio o encarou
com olhos atônitos e amedrontados, um índio enlouquecido pela batalha, com
filetes de tinta vermelha escorrendo de buracos menores que grãos de pimenta.
Uma tira de pele rasgada pendia de uma bochecha. Havia um fundo vergão em seu
pescoço.
Estou perdendo!
Passou a mão trêmula pelos cabelos. A porta da frente
estava isolada. O mesmo ocorria com o telefone e com a extensão na cozinha.
Eles tinham um maldito lançador de foguetes e um impacto direto lhe arrancaria
a cabeça.
Diabo! Aquilo nem mesmo constava da lista pintada na
caixa!
Começou a inalar profundamente o ar, mas soltou-o de
repente num grunhido quando surgiu na porta um buraco do tamanho de um punho,
acompanhado de uma explosão que lançou longe lascas de madeira chamuscada.
Pequenas labaredas brilharam brevemente nas bordas irregulares do buraco e
Renshaw viu o forte relâmpago quando eles lançaram novo foguete. Outro buraco e
mais madeira voou, lançando lascas em brasa no tapete do banheiro. Ele apagou
as brasas com os pés e dois helicópteros zumbiram raivosamente através do
buraco. Minúsculas balas de fuzil automático costuraram-lhe o peito.
Com um sibilante gemido de fúria, Renshaw bateu em um
deles com a mão nua, sofrendo uma série de cortes profundos na palma da mão. Em
repentina e desesperada improvisação, atacou o helicóptero com uma pesada
toalha de banho. O aparelho caiu no chão, ainda funcionando, e Renshaw o
pisoteou até estraçalhá-lo. Sua respiração era arquejante, ruidosa. O sangue
caiu num dos olhos, quente e fazendo arder. Ele o limpou com as costas da mão.
Aí está, com os diabos! Aí está. Isto os fará pensar.
Na verdade, deu a impressão de que eles tinham parado
para pensar. Não houve movimento durante quinze minutos. Renshaw sentou-se na
beirada da banheira, pensando febrilmente. Tinha que haver uma escapatória
daquele beco sem saída. Tinha que haver. Se ao menos existisse um modo de
flanqueá-los...
Virou de repente a cabeça e olhou para a pequena
janela acima da banheira. Existia um modo. Claro que existia.
Seu olhar desceu até a lata de fluido de isqueiro em
cima do armário de remédios.
Estava estendendo a mão para pegá-la quando escutou o
barulho.
Virou-se depressa, levantando o Magnum... mas era
apenas um pedacinho de papel enfiado por baixo da porta. Renshaw notou
sombriamente que a fresta sob a porta era pequena demais para que até mesmo um
deles conseguisse passar.
No papel estava escrito, com letra muito miúda:
Renda-se
Renshaw sorriu com ar sinistro e guardou o fluido de
isqueiro no bolso do peito.
Encontrando um coto de lápis, escreveu a resposta no
pedacinho de papel e o empurrou por baixo da porta. A resposta era: VÃO À MERDA
Seguiu-se uma súbita e cegante barragem de foguetes e Renshaw
recuou. Os foguetes descreviam trajetórias curvas, entrando pelo buraco na
porta, e explodiam contra os azulejos azul-claros acima do cabide de toalhas,
transformando a elegante parede num panorama lunar em miniatura. Renshaw cobriu
os olhos com a mão para proteger-se dos estilhaços de azulejo e reboco que
voavam para todos os lados. Sua camisa apresentava buracos fumegantes e suas
costas ficaram pipocadas.
Quando a barragem cessou, Renshaw entrou em ação.
Subiu na beirada da banheira e abriu a janela corrediça. Estrelas frias
piscavam para ele. Era uma janela estreita, com um estreito ressalto horizontal
pelo lado externo do prédio. Mas não havia tempo para pensar nisso.
Renshaw içou-se para a janela. O ar frio castigou-lhe
o rosto e o pescoço lacerados como uma mão espalmada. Estava inclinado sobre o
ponto de equilíbrio das mãos, olhando diretamente para baixo. Quarenta andares
de altura. Dali, a rua parecia mais estreita que os trilhos de uma ferrovia de
brinquedo. As luzes brilhantes e cintilantes da cidade pareciam faiscar
loucamente, como pedras preciosas jogadas a esmo.
Com a agilidade de ginasta bem treinado, Renshaw
ergueu os joelhos até apoiá-los no peitoril da janela. Sim, se um daqueles
pequenos helicópteros entrasse agora pelo buraco na porta, um tiro no traseiro
seria o bastante para que ele caísse verticalmente, gritando através do espaço.
Mas nenhum entrou.
Renshaw torceu o corpo, lançou uma perna para fora e
esticou a mão para o ressalto superior, segurando-o com firmeza. Um segundo
depois, estava em pé no ressalto exterior à altura do peitoril.
Evitando deliberadamente pensar na queda horrível sob
seus calcanhares ou no que aconteceria se um dos helicópteros saísse para
persegui-lo, Renshaw esgueirou-se em direção à esquina do prédio.
Cinco metros... três... Pronto! Parou, o peito
comprimido de encontro à parede, as mãos espalmadas sobre a superfície áspera.
Podia sentir a lata de fluido de isqueiro no bolso do peito e o peso do Magnum
enfiado na cintura das calças.
Agora, contornar a maldita esquina.
Suavemente, ele deslizou um pé em torno da esquina e
passou o peso do corpo para ele.
Agora, o ângulo reto estava comprimido como o gume de
uma navalha contra seu tórax e abdome. Na pedra áspera em frente a seus olhos
havia uma mancha de excremento de aves. Cristo! ― refletiu ele loucamente. ― Eu
não sabia que voavam tão alto.
Seu pé esquerdo escorregou.
Por um instante incrível, que lhe pareceu eterno,
Renshaw vacilou na beirada, o braço direito remando doidamente para recuperar o
equilíbrio. Então, agarrou os dois lados do prédio num abraço de amante, o
rosto espremido contra a quina dura, a respiração trêmula e ofegante.
Pouco a pouco, fez o outro pé contornar a esquina.
A nove metros de distância, projetava-se o terraço de
sua sala de visitas.
Renshaw chegou silenciosamente até lá, respirando de
leve. Por duas vezes foi obrigado a parar quando fortes rajadas de vento
ameaçaram arrancá-lo do ressalto.
Então, atingiu o terraço, agarrando-se às grades de
ferro.
Pulou-as sem fazer ruído. Deixara as cortinas meio
abertas por dentro da porta corrediça de vidro e agora espiou cautelosamente
para o interior da sala. Eles estavam exatamente como ele queria ― de costas.
Quatro soldados e um helicóptero tinham ficado de
guarda ao baú. O resto estaria em frente à porta do banheiro, com o lançador de
foguetes.
Muito bem. Invadir como a polícia, exterminar os que
estavam perto do baú e fugir pela porta da frente. Então, um táxi até o
aeroporto e um vôo direto até Miami, para encontrar a garota de idéias
brilhantes de Morris. Refletiu que gostaria de queimar a cara dela com um
lança-chamas. Seria justiça poética.
Tirou a camisa e rasgou uma comprida tira da manga.
Largou o resto, que lhe caiu aos pés, e mordeu a ponta de plástico da lata de
fluido de isqueiro. Enfiou uma ponta do trapo na lata, retirou-o e depois
enfiou a outra ponta, empurrando o pano até que restavam apenas quinze
centímetros de tecido embebido em fluido fora da lata.
Pegou o isqueiro, respirou fundo e o acendeu. Levou a
chama ao trapo e, quando este se inflamou, abriu violentamente a porta de vidro
e mergulhou para dentro da sala.
O helicóptero reagiu imediatamente, dando um vôo
rasante suicida contra Renshaw enquanto este rastejava pelo tapete, largando
respingos de fogo líquido. Renshaw golpeou-o com o braço, não se importando com
o choque de dor quando as lâminas lhe rasgaram a carne.
Os pequenos infantes fugiram para o interior do baú.
Depois disso, tudo aconteceu depressa.
Renshaw jogou a lata de fluido de isqueiro. A lata se
incendiou, transformando-se numa bola de fogo. Logo em seguida, ele recuou,
correndo em direção à porta da frente.
Jamais soube o que o atingiu.
Foi como o baque de um cofre de aço caindo de uma
altura respeitável. Só que aquele baque sacudiu todo o arranha-céu de
apartamentos, vibrando pela estrutura de aço.
A porta da frente do apartamento de cobertura voou das
dobradiças, chocando-se com a parede oposta do hall.
Um casal que caminhava de mãos dadas na calçada olhou
para cima a tempo de ver um grande relâmpago branco, como se uma centena de
flashes fotográficos fossem disparados simultaneamente.
― Alguém causou um curto-circuito ― disse o homem. ―
Creio que...
― O que é aquilo? ― perguntou a garota.
Algo caía preguiçosamente na direção deles; o homem
estendeu a mão e pegou no ar.
― Cristo! É a camisa de alguém. Cheia de furinhos. E
de sangue, também.
― Isso não me agrada ― disse a moça, nervosa. ― Chame
um táxi, está bem, Ralph? Se aconteceu alguma coisa lá em cima, teremos que
falar com a polícia e meus pais não sabem que saí com você.
― Claro.
O homem olhou em volta, avistou um táxi e assoviou
para chamá-lo. As luzes de freio se acenderam e o casal correu para o veículo.
Atrás deles, sem ser visto, um pequeno pedaço de papel
desceu lentamente do alto do prédio e caiu perto dos restos da camisa de John
Renshaw. Trazia escrito numa caligrafia inclinada:
Ei, garotada! Um brinde especial neste baú do Vietnã!
(Promoção por prazo limitado)
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20 Mísseis terra-ar "Twister"
1 Arma Termonuclear em Escala.
KING, Stephen. Sombras da noite. 1.ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008.
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